quinta-feira, 17 de julho de 2008

Grassos e gracejos

A coisa mais ousada que Milinkoi já havia feito até o dado instante de sua existência foi nascer. Nascer é uma ousadia extraordinária para algumas pessoas. O mundo normalmente não necessita da presença de pelo menos metade das criaturas que vivem nele. Muitas só fazem volume e são grandes pedaços de carnes vagando por uma terra devastada pelo egoísmo e infinita torpeza.
Algo que irritava bastante o nosso herói era o fato de ele nunca poder dizer o que realmente sentia em relação às situações e pessoas.
Ele era saudoso. Tinha transtorno obsessivo de sentir saudade de alguns. Uma vez passou um dia sem falar com uma garota com quem gostava muito de conversar - isso era raro - e resolveu falar isso a ela. O efeito disso é instantâneo. A criatura morreu de medo dele, de modo que ele perdeu assim a saudade e a garota.
Lição de vida número um: nunca diga às pessoas o quanto gosta delas nem o quanto sente falta delas, as lindinhas acham o amor pesado demais. Elas não suportam a idéia de felicidade e totalidade, são parvas, não cabe. Elas gostam mesmo é de desprezo, indiferença e grosseria.
Deixou de ser saudoso, então, e ficava se tornando esse ser estranho a cada passo que ia dando. O mundo só oferecia a ele a aprendizagem que serve para desumanizar e deixar os seres mais herméticos e inacessíveis.
Acordava mais banal a cada dia. Não por vontade, ao contrário do que pensava. Ser banal é uma etapa darwinista.

sábado, 7 de junho de 2008

Do inacreditável

Alguém tinha que dar um basta naquela existência estranha. Desde que me dei conta que fazia parte da vida e fazia parte da vida interagir com as pessoas, eu desejava, todos os dias, num voto silencioso, antes de me deitar no sofá da sala, "Amanhã, quero acordar banal". E quando dormia, muitas vezes sonhava com essa vida sem sobressaltos, preenchida só com amenidades. Mas era só acordar e pronto: toda a sorte de eventos esdrúxulos se atiravam na minha frente e me obrigavam a lidar com eles. Não é pra menos que vivo de mau-humor.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Cheguei Vindo.

Vou me apresentar porque é minha primeira vez [pra quem gosta de coisas ambíguas e implora por bandalheiras nesse blog].
Rita Kramer, prazer. E sempre que você vir um texto em terceira pessoa por aqui, ele será meu. Obrigada.

_________

Sua casa poderia ser concebida como um lar “normal”. Afinal, nela havia uma sala, três quartos, uma cozinha, três lavabos e dois Pais. Era mais ou menos isso. Os pais faziam parte da decoração, de modo que era notável a harmonia entre os entes e a mobília, algo com um efeito em cores pastéis.

Milinkoi era uma pessoa do tipo que chamaríamos de bizarra. A bizarrice fazia um périplo ao redor de toda a sua existência, desde o dia em que nascera. Vinte e nove de fevereiro.

Nascer em vinte e nove de fevereiro é um fato bizarro, mas poderiam discordar: nem tanto. O que tem demais em fazer aniversário de quatro em quatro anos?

Na maternidade, acharam que o menino tinha trissomia no cromossomo vinte e um, quando na verdade ele somente tinha os olhos um pouco rasgados por conta de sua tia-avó de terceiro grau, que era de alguma ilha esquisita no oriente.

Irrelevante toda essa descrição do nascimento desse rapaz. Ele não era filho de nenhum ator hollywoodiano; não morava na África e não foi, assim, salvo da inanição por nenhum ator hollywoodiano; muito menos era herdeiro de títulos inúteis de nobreza europeus. Ele era mais um ser insignificante chegando a esse baixio das bestas, e o que ele podia fazer para ser diferente?

Quando era criança, Milinkoi não gostava de ir ao recreio na escola. Adendo este fato a seu pânico de crianças histéricas, ele tinha medo de que os colegas pedissem o seu lanche.

Os outros garotos pareciam não se contentar com o que era deles, e Milinkoi destestava dividir o que era dele. É óbvio que nessa relação havia um conflito grave de interesses, de modo que isto resultava em: a) alguns meninos falando compulsivamente sobre jogos eletrônicos e comendo os lanches um dos outros; b) um outro garoto sozinho pensando sobre o vôo das baratas e comendo o seu lanche. A sociedade tem dessas coisas.

terça-feira, 25 de março de 2008

Cabei Chegando.

Sem apresentações, sem nada. A seco e com areia.

Atualização: Animais, o que segue é um fictício. Em voz masculina. Isso NÃO quer dizer que tô virando hominho. Êta.


A casa, eu tenho só pra mim. É a primeira vez que digo isso em um punhado de tempo. Minha família dorme, e por mais que possa-se gostar de famílias, se você tem alguma coisa dentro de você, gosta de sossego. O tumulto apaga, mesmo os risos, as cores, os cafés-da-manhã, sufocam essas coisas que você gosta de chamar de só suas. Mas alguns aqui sempre acordam mais cedo que eu, e sempre acordarão. Quando desperto, algo já está em movimento. Outros acordam e sempre acordarão os mais tardios, e parecem não se importar com isso. Eu fico no meio, no ínterim.

Talvez. Seja como for, já era o sossego. Um passa por mim e me faz perguntas, a forma mais bem sucedida de começar uma conversação. Eu não quero conversas bem sucedidas. Quero um pouco de silêncio e a sua ausência pra gostar mais dele. Mas com as perguntas é assim, essas te arrancam de toda e qualquer coisa que estiver fazendo para apenas respondê-las. Apenas? Ninguém pára pra pensar se a outra parte está tendo pensamentos profundos que serão arruinados após a formulação da pergunta. Ninguém se importa se ela estava fazendo outra coisa. Perguntas são perguntas. Não ofendem.

Desculpe, estou irascível. Não era minha intenção.

Mas aquele instante. Do momento em que comecei o primeiro parágrafo, até uma linha antes do começo do segundo. Era só meu. Enquanto minha namorada dorme na cama da qual eu saí silenciosamente pra me arrumar pro curso, e o instante em que vem me falar que é Sábado de Carnaval. Pro Inferno com o Sábado de Carnaval. Como você ousa me tirar o sossego de uma hora de ônibus até o curso que eu tanto ansiava, como você ousa interromper minha solidão que já durava mais de vinte minutos, mas que eu gostaria de estender por horas e horas e horas, com essa sua pergunta estúpida revestida com ares de superioridade calendárica? Só porque você tem os dois pés mais firmes no chão que eu? Espere e assista só como me importo com isso.

Pois me deixasse quebrar a cara.

Com pessoas demais é assim. Se preocupam com você, de um modo arrogante ou um modo prestativo, não importa. Por mais que você seja quem você é, elas acabam te ajudando. Elas aplainam seus erros. Pois querer ficar sozinho é querer quebrar a cara. Meia dúzia de erros, mas sem meia dúzia de perguntas. Sem "O que você tá fazendo?", sem "vou fazer um café, depois vamos malhar?". Prefiriria. Mas não me deixam. E acham perfeitamente natural não me deixarem saltar pra dentro de mim mesmo. Vai ver, acham que é um favor, até.

Eu queria gostar menos de famílias, e com isso descartar meu último lastro com a humanidade. Mas é um desejo incompleto e completamente impossível. Estou atrelado a eles como estou atrelado ao meu exílio. Mas de um eu tenho quase o tempo todo. De outro hoje eu tive vinte minutos. E isso me permite continuar.